Com o primeiro decênio do Plano de Agricultura de Baixa Emissão de Carbono (ABC) próximo do fim, o governo trabalha nas metas para os próximos dez anos (2021-30) e estuda incluir a irrigação entre as atividades passíveis de serem financiadas pela linha de crédito - o que não é consensual entre pesquisadores por causa do risco de escassez hídrica. Outra atividade que pode passar a ser abarcada pelo ABC é a engorda intensiva de gado (o confinamento), medida que é bem vista por reduzir as emissões de metano.
Em entrevista ao Valor, a diretora do Departamento de Produção Sustentável e Irrigação do Ministério da Agricultura, Mariane Crespolini, sinalizou que a Pasta quer incorporar novas tecnologias de mitigação de poluentes e de adaptação às mudanças climáticas no desenho do plano. Segundo ela, irrigação e terminação intensiva de animais são algumas medidas que podem compor o novo portfólio da linha de crédito - a inclusão teria validação científica, afirmou Mariane.
A ciência também é evocada pela diretora para sanar as dificuldades de mensurar os resultados do Plano ABC, considerado um sucesso pelo Ministério da Agricultura e elogiado em fóruns internacionais. De acordo com ela, imagens de satélite vão mostrar que o compromisso de recuperar 15 milhões de hectares de pastagens degradadas desde o início do plano, em 2010, foi cumprido, ao contrário do que sugeriam estudos recentes sobre o tema. Por outro lado, a Pasta admite rever os incentivos à prática de florestas plantadas, uma das seis abordadas no Plano ABC e a única que não deverá atingir o objetivo para 10 anos.
"O agronegócio é responsável por pouco mais de 20% das emissões de carbono e elas ainda não são 100% neutralizadas, mas temos um grande potencial recuperando pastagens", salientou Mariane. Ela também aposta na integração com as finanças verdes daqui para frente para que as práticas de mitigação de emissão de carbono virem pagamentos por serviços ambientais aos produtores. As estimativas parciais dão conta que o Plano ABC já ajudou a mitigar a emissão de 170 milhões de toneladas de carbono equivalente da atmosfera em dez anos.
Em relação ao plano de inclusão de atividades no programa, a diretora do ministério afirmou que a agricultura irrigada mitiga emissões e promove produção mais adaptada ao risco climático. "Ela é ABC na veia". Segundo Mariane, a técnica está sendo olhada com muita atenção para integrar a base de tecnologias na próxima década. "Envolve o uso eficiente de água, projetos adequados, assistência técnica e estratégia para usar de maneira mais eficiente", frisou.
Um dos idealizadores do Plano ABC e uma das maiores autoridades no assunto, o pesquisador da Embrapa Eduardo Assad é um crítico da possibilidade. De acordo com ele, o interesse de incluir a irrigação não é novo. Quando o programa foi criado, produtores de cana do Nordeste defendiam a medida. "A pressão vem lá de 2010. Já fizemos alguns pareces contrários", afirmou.
Assad deverá ter voz ativa no debate, pois foi indicado pelo Fórum Brasileiro de Mudanças do Clima para compor a Comissão Executiva Nacional do Plano Setorial para Consolidação de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Agricultura (CENABC). O colegiado, se for efetivado, será consultado na definição do Plano ABC que vigorará até 2030.
O pesquisador, que se disse aberto ao debate, indica cautela com o tema. "Estou atrás de uma justificativa técnica que me mostre que está reduzindo emissão de carbono e que manterá a água no nível que as cidades possam usar. Não é bem isso que as universidades falam", afirmou Assad, ressaltando que já existem áreas onde há conflito por água.
Questionada sobre a divergência, a diretora do Departamento de Produção Sustentável e Irrigação do Ministério da Agricultura defendeu as precauções que serão adotadas. "Preconizamos a agricultura irrigada com assistência técnica e com manejo adequado do solo, para que a recarga dos aquíferos ocorra. E, claro, sempre baseada na legislação e no instrumento da outorga. Em conflitos pelo uso da água, a irrigação é suspensa", disse Mariane. Para ela, as leis estaduais de outorga são rígidas quanto ao uso correto e necessidades de interrupção de irrigação.
No caso da inclusão dos confinamentos, há maior consenso. Para Assad, pesquisas já mostraram que realizar a última fase de engorda do boi neste sistema - no qual a dieta é baseada em grãos - reduz a emissão de metano em relação à engorda final no pasto. Com o uso do confinamento, o processo de engorda do gado é mais rápido.
A visão de Assad é compartilhada pelo Ministério da Agricultura. "É um potencial e pode ser integrado baseada em estudos científicos", disse a diretora da Pasta. "Se entro com o animal em confinamento curto, tiro em junho e faço confinamento de 90 dias, evito emissões de 6 a 7 meses", explicou Mariane.
Segundo ela, o confinamento curto pode trazer benefícios econômicos para os pecuaristas com maior fluxo de caixa e estimular a estabilidade de preços aos consumidores - porque pode permitir a maior oferta de animais durante a entressafra dos pastos. De acordo com um estudo sobre a pecuária de Mato Grosso, publicado no ano passado e assinado por sete cientistas, brasileiros e estrangeiros, as emissões líquidas tendem a diminuir em até 5 quilos de carbono na comparação entre o modelo de pastagem recuperada e a terminação intensiva do gado bovino.
O martelo sobre os objetivos do ABC para os próximos dez anos ainda não está batido. No caso das florestas plantadas, que ficaram bem abaixo da meta de 3 milhões de hectares no decênio que se encerra neste ano, a diretora do ministério afirmou que a conjuntura de mercado, com preços da madeira em queda, desestimulou os produtores e tornou a tecnologia menos atrativa. De acordo com ela, a Pasta vai continuar fomentando as florestas plantadas, mas de forma mais ampla, o que inclui o incentivo à biomassa florestal.
Se a questão econômica tirou o interesse em florestas, por outro incentivou ainda mais os pecuaristas a recuperarem pastos para ampliar a criação e melhorar a produção. Mais de 4 milhões de hectares foram recuperados com ajuda do crédito oficial do ABC até 2018, mas pelo menos outros 7 milhões foram manejados com fontes diferentes de financiamento ou recursos próprios dos produtores, o que traz o número final para perto da meta de 15 milhões de hectares.
Mas os números podem ser melhores. Na próxima semana, o Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento da Universidade Federal de Goiás entregará relatório com dados atualizados da recuperação dos pastos. "Vai ser um número sensacional, acima dos 11 milhões que já temos hoje, um baita resultado", ressaltou Mariane.
Na atual safra (2020/21), foram disponibilizados R$ 2,5 bilhões para o Plano ABC. Nos três primeiros meses da temporada, cerca de R$ 1 bilhão em empréstimos já foram liberados, sendo mais de R$ 506 milhões direcionados para a recuperação de pastos, o suficiente para melhorar 180 mil hectares.
Fonte: Valor Econômico
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