Itens podem ser fabricados a partir da carne de suínos, bovinos, aves e pescados
Salames, copa, lombo, pastrami, bacon, carne de sol e linguiças são alguns dos itens da charcutaria. O nome está ligado ao processo que assegura maior longevidade a produtos cárneos, em diferentes técnicas. Seja a desidratação por fritura, como no caso da carne de lata, guardada na banha; a defumação, precedida pela cura da peça; maturação, quando a carne é mantida em câmara com temperatura e umidade controlada ao longo de um período, entre outros variados métodos.
No mercado internacional, uma negociação recente no segmento movimentou milhões de dólares. Em divulgação para imprensa, no dia 13 de dezembro, a JBS informou que havia assinado o acordo para aquisição de 100% do Grupo King´s pela sua subsidiária Rigamonti. Com a negociação, a empresa assume quatro fábricas do Grupo King’s na Itália, além de toda a operação nos Estados Unidos e a operação comercial de duas marcas históricas no mercado de charcutaria italiana, a King’s e a Principe. Além disso, segundo a empresa, a Rigamonti passa a deter a participação de 20% na Piggly, descrita como “primeiro criador de suínos sustentável e 100% livre de antibióticos da Itália”.
A operação envolve investimento de US$ 92,5 milhões e, segundo a empresa, é estratégica para a expansão da JBS nos Estados Unidos e na Europa, além de outras regiões. “A companhia passa a contar com um portfólio e estrutura de produção e distribuição de especialidades italianas autênticas como prosciutto, bresaola, mortadela, speck e salame com certificação de origem, utilizando técnicas de fabricação e de cura artesanais”, informa a empresa à imprensa.
No Brasil e no Estado de Goiás, a reportagem não conseguiu acesso a estatísticas que mensurassem o tamanho desse mercado, seja na fabricação industrial ou artesanal.
Levantamento do Sindicato das Indústrias de Carnes e Derivados do Estado de Goiás (Sindicarne), a pedido da Revista Campo, encontrou relacionada a essa área apenas três empresas de produção de charque em solo goiano. “Temos muita matéria-prima, mas a exportação consome boa parte da carne aqui produzida”, observa o assessor executivo do Sindicarne Goiás, Wender Cardoso.
Os itens de charcutaria podem ser produzidos a partir da carne de diferentes origens, como de suínos, bovinos, aves e pescado. Só em relação aos três primeiros, Goiás exportou um total de 450 mil toneladas de carne, no acumulado de janeiro a novembro de 2021, sendo 243,9 mil toneladas de carne bovina; 196,6 mil toneladas de carne de frango e 9,5 mil toneladas de carne suína. Esses quantitativos fazem o Estado ter, respectivamente, a terceira, nona e sétima maior participação nacional nas vendas externas dessas proteínas, segundo dados apresentados na edição de janeiro do Agro em Dados, publicação do governo de Goiás, por meio da Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Seapa).
Entre as indústrias em Goiás com produção na área identificadas pelo Sindicarne, uma é a Bello Charque Alimentos. A empresa, fundada em 2005, em Trindade (GO), iniciou sua produção com cerca de 60 toneladas por mês.
Em 2009, com vistas a expandir suas atividades, a unidade industrial foi transferida para Porangatu, na região norte do Estado. “A cidade foi escolhida por ter um clima quente durante todo o ano, o que propicia um acabamento único no processo de charquear”, informa o sócio da empresa, Gustavo Prado Corrêa. Foi na nova planta que começaram a produzir o charque tradicional, que, segundo ele, hoje é considerado o principal produto da Bello Charque.
Atualmente, produzem 4.800 toneladas de charque por ano e são responsáveis pela geração de 130 empregos diretos e 65 indiretos. Entre os cortes produzidos estão dianteiro, ponta de agulha, traseiro, havendo ainda linha de cortes especiais, segundo Corrêa, disponibilizadas em embalagens de 400 gramas, 500 gramas, 1 quilo, 5 quilos e 30 quilos.
O principal mercado consumidor, de acordo com o empresário, são açougues, supermercados e hipermercados, localizados em Goiás, Distrito Federal, Bahia, Alagoas, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Amazonas e Pará. “Nosso diferencial é que utilizamos apenas o sal como conservante, sendo realizado rígido controle higiênico sanitário, desde a recepção da matéria-prima até o produto acabado”, diz.
Em relação ao mercado para esses itens em 2022, Corrêa afirma que, em função das exportações para a China, não acreditam em crescimento. “Pois a principal matéria-prima que consumimos é a costela bovina, e a China remunera muito melhor que o mercado interno. Assim, acreditamos que será um ano difícil de matéria-prima e a nossa meta é manter a produção”, cita
Adaptação
Ao todo, segundo o gerente de inspeção da Agência Goiana de Defesa Agropecuária (Agrodefesa), Paulo Viana Filho, em Goiás há pouco mais de 100 fábricas de produtos cárneos e, nessas unidades, ter produto curado ou defumado é opção que a empresa pode ter ou não. “Quase todas estariam aptas a fazer se comprassem os equipamentos e se estruturassem para o processo de defumação e cura”, diz. Ele exemplifica que uma fábrica de linguiça, por exemplo, que quer fazer salame e não tem defumador, tem que apresentar projeto para essa alteração e, se aprovado, passa a estar apto a produzir um embutido, lombo, defumado, entre outros.
É por esse processo que a unidade arrendada por Augusto Gontijo passa. Formado em Administração em Agronegócios, ele é sojicultor e há três anos começou a produzir itens da charcutaria pelo método de defumação, a princípio, por hobby. Após leitura sobre essa técnica, curso on-line em escola de São Paulo e fabricação para atender amigos e família, em agosto de 2019 começou a comercializar sua produção, que no início era de 10 a 15 quilos por mês, e realizada em um defumador construído por ele mesmo, na fazenda.
“Resolvi fazer linha de charcutaria fina, com foco em aperitivos”, diz. Entre os itens que Gontijo produz estão copa defumado, lombo defumado - comum e com crosta de pimenta e cracóvia – um salame especial, que são vendidos de forma fracionada. Ainda na lista de produtos: joelho e costelinha suína, salmão defumado e pastrami. “É charcutaria artesanal. Não uso corantes, não uso aditivos. Preciso usar conservantes pela responsabilidade, mas o mínimo necessário para oferecer segurança alimentar, não correr riscos de patógenos”, explica ele, que batizou a empresa de TFT Charcutaria. As iniciais são referentes a tempero, fumaça e tempo, elementos que estão presentes no processo de fabricação. As carnes usadas, segundo Gontijo, são adquiridas de indústrias com selo de inspeção.
Hoje a empresa de Gontijo produz, em média, de 600 a 800 quilos por mês. Os itens são fabricados em quatro defumadores instalados em Goiânia. “Produção pequena, mas a pretensão é aumentar”, cita. Ele informa que arrendou uma pequena indústria na capital que hoje produz cerca de 1,5 tonelada de linguiças gourmet. Como a planta não tem autorização para defumar, no momento explica que projeto está sendo preparado por arquiteta para criar cômodo para defumadores. O projeto precisa passar pela aprovação da Agrodefesa e, se aprovado, construirão a sala quente para iniciar a fabricação dos itens defumados por lá. Confirmada essa expectativa, o empresário diz que o objetivo é alcançar a produção de quatro toneladas por mês, entre linguiça e charcutaria, e implementar uma loja na própria fábrica.
“O hobby deu certo e, de repente, me vi fornecendo para empórios, pessoas que montam tábuas de frios, buffets”, diz. Hoje, além de atuar na área, informa que também passou a ministrar cursos. Ele conta que inclusive está cadastrado na Secretaria da Retomada para ministrar cursos de charcutaria de produtos defumados, mas que ainda não iniciaram turmas por lá. De acordo com a comunicação da Retomada, existe a demanda do curso, mas ainda não há data exata de quando passará a ser ofertado.
Regulamentação
Presidente da Associação Paulista de Charcutaria Artesanal (APAC), Edson Navarro diz ser difícil mensurar o número de produtores artesanais na área porque a maioria não possui o selo de inspeção sanitária. “E não é porque não quer ter, mas porque não consegue por causa da burocracia”, diz. Ele pontua que, sem uma regra específica para esse modelo de produção artesanal, um produtor que fabrica de 200 a 300 quilos de produtos por mês teria que seguir as mesmas regras de grandes indústrias, por exemplo. Ele calcula que o investimento para se ter uma licença estadual gira em torno de R$ 600 mil. “Nenhum microprodutor tem esse dinheiro para investir e seria uma estrutura muito maior que a necessária para ele”, pontua. A solução, segundo Navarro, é “flexibilização da lei” e uma fiscalização “mais orientativa que punitiva”.
Paulo Viana Filho, gerente de inspeção da Agrodefesa, aponta que especificamente sobre charcutarias no modelo artesanal ainda não há regulamentação em Goiás, mas que um comitê com representantes do governo, pesquisa e comunidade civil discutem o assunto. Ele frisa, porém, que mesmo sendo artesanal o fornecedor tem que garantir que o produto não vai fazer mal para quem consumi-lo. Uma das determinações é que a matéria-prima seja inspecionada e os defumadores, por exemplo, atendam às regras de higiene e sanidade para se trabalhar com a carne.
Em nota, a Seapa Goiás informou que o processo de normatização dos produtos cárneos artesanais do Estado está em andamento. Segundo a pasta, após reunião realizada com a Agrodefesa, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e a Agência Goiana de Assistência Técnica, Extensão Rural e Pesquisa Agropecuária (Emater), ficaram determinados os critérios que diferenciam os produtos artesanais dos produtos artesanais que são aptos a receber o Selo Arte. “Assim, estamos na etapa de consulta com órgãos patrimoniais para elaboração de um termo de referência, que posteriormente será encaminhado a novas discussões junto com o Mapa e Agrodefesa”. A Seapa informa que, “embora haja os trâmites mínimos necessários, o trabalho está sendo feito de forma que possa ser concluído o mais breve possível”
Senar Goiás oferta curso gratuito na área de charcutaria
Os primeiros treinamentos na área de charcutaria do Senar Goiás ocorreram em 2012. “E evoluíram para o treinamento que temos hoje: Defumação artesanal de carnes”, segundo informa a coordenadora técnica de Formação Profissional Rural da entidade, Carolina Berteli. Em 2021, foram realizados 94 treinamentos sobre esse tema, em 50 municípios, e mais 77 palestras on-line.
O treinamento do Senar Goiás na área é presencial, com carga horária total de 24 horas, distribuída ao longo de três dias, e aberto para qualquer pessoa com idade a partir dos 18 anos e que seja alfabetizada. Interessados em realizá-lo devem procurar o Sindicato Rural do município para fazer a solicitação. A turma tem que ter no mínimo nove alunos e, no máximo, 14. “O treinamento é gratuito e inclui tanto o material didático teórico quanto o da prática [como as carnes que serão processadas, por exemplo]”, cita Carolina.
Na avaliação da coordenadora técnica, as possibilidades de mercado são grandes quando se fala em defumação artesanal de carnes, mas ela ressalta que este é apenas um dos processos relativos à charcutaria. “O treinamento é uma oportunidade de nova fonte de renda e de agregar valor à produção também, sendo possível imprimir em seu produto características regionais, culturais”, diz. Carolina destaca ainda que mesmo como produção artesanal, o produtor tem regras a cumprir, como as boas práticas de produção, que também são abordadas no curso.
Foi a partir do treinamento do Senar Goiás que Geysa Pereira Ribeiro, Tállita Machado e João Paulo Sousa iniciaram a produção de itens de charcutaria. No caso de Geysa, hoje coordenadora de Pecuária de Corte do Senar Goiás, o primeiro contato prático com a área foi em 2017, no curso da entidade. Depois realizou cursos particulares no segmento. Ela, que é médica veterinária, diz que a ideia inicial era produzir para consumo próprio, “de forma mais natural possível”. Começou em 2019, com lombo e salaminho defumados. Depois de outro curso, em São Paulo, inseriu no cardápio a copa maturada, que não passa por processo térmico. Com a demanda que surgiu de amigos montou uma câmara de maturação maior, onde, inicialmente, conseguia processar de 90 a 100 quilos de carne. “Quando fica pronto o produto perde em torno de 40% do peso”, diz.
Hoje, ela está com três câmaras ativas e faz os produtos de forma paralela a sua atividade principal. “Após o expediente e aos fins de semana”, conta. A capacidade atual de sua empresa, a Bravo! Charcutaria, é para transformar 250 quilos de carne. “Que sairão da câmara com uns 150 quilos, a cada 60 dias, prontos para consumo”.
Atualmente, ela fabrica oito produtos, entre defumados (cura rápida) e os de cura longa (que vão para câmara de maturação). “A copa lombo é o que tem mais saída”. Hoje, o quilo desse item no atacado, a depender da quantidade negociada, segundo Geysa, varia de R$ 150 a R$ 170. “Já comercializo fatiado e embalado”.
Tállita Machado, que é zootecnista, diz que depois de ministrar pelo Senar Goiás o então treinamento de defumação de carnes suínas, há seis anos, começou a se apaixonar pela área. Fez especialização em Vigilância Sanitária e Higiene de Alimentos e MBA em Gestão da Produção – qualidade higiene de alimentos. “Foi onde consegui voltar todo meu nicho de trabalho para indústria de alimentos, para área de charcutaria”, conta.
Além do curso de charcutaria do Senar, também informa que estudou “nas duas maiores escolas de charcutaria no Brasil”. E, num concurso, se classificou como a primeira mulher pitmaster (mestre churrasqueiro) de uma das grandes fabricantes de defumadores no País. “Hoje, ministro cursos de charcutaria, de defumação, de american barbecue, no Brasil inteiro”, conta.
Tállita informa que não chegou a ter uma fábrica, mas, durante parte do período da pandemia, processou cerca de 900 quilos de carne em um mês, dentro de casa e com a ajuda da mãe, para atender alguns amigos e clientes. Na lista, estavam itens para feijoada e para tábua de frios.
No caso de João Paulo Sousa, que é agrônomo, a fabricação dos produtos de charcutaria ganhou forma comercial durante o período inicial da pandemia de Covid-19. Antes, a produção era apenas como “hobby”. Mas com a paralisação provisória das atividades presenciais, tanto as de instrutor, como no seu escritório de agronomia, em Pontalina, começou a postar nas redes sociais as carnes que defumava e passou a receber demanda.
“Enxerguei nisso uma oportunidade de transformar esse hobby numa fonte de renda para honrar compromissos durante um momento que meu escritório estivesse fechado e os treinamentos, paralisados”, conta. Ele calcula que por dez meses se dedicou ao ofício. Produzia bacon, lombo defumado, lombinho canadense e linguiça defumada. “Comecei com uma média de 20 quilos de carne por semana e cheguei a defumar 80 quilos por semana”, diz.is
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